O fato , gravado por alguém que certamente encontrava-se no local sozinho, em todas as acepções da palavra, jogado, largado, desprezado, ignorado , incorpora o espírito do repórter bem -aventurado (ou aventureiro ?) , que se vê diante do furo jornalístico, apressando-se em gravar e lançar às favas a honra e a imagem de uma pessoa que, mesmo gestante, tentava ganhar seu pão de cada dia.
Num outro vídeo, procurada pela reportagem de uma TV local, a ofendida diz que vai procurar seus direitos.
Logicamente que a indenização civil por danos morais é de rigor, mas e na seara penal? Houve crime por parte do divulgador das imagens?
A resposta, uma vez apurados e confirmados os fatos, como é de rigor num Estado democrático de direito, será afirmativa.
Vejamos:
1- divulgou-se um vídeo em que se “denunciava” uma pessoa que, pelas imagens, enchia garrafas descartáveis com água suja proveniente de um isopor que certamente continha outras garrafas lacradas, contendo água mineral.
2- se fosse provado o fato de que a vendedora ambulante de fato vendia “gato por lebre”, ou seja, água suja proveniente de degelo, em lugar de água mineral, estaríamos diante de um crime contra a saúde pública, previsto no Código Penal (art 272), além do crime de estelionato ( art 171CP), pois estaria induzindo pessoas a erro, com o fito de auferir vantagem econômica.
Falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de substância ou produtos alimentícios
Art. 272 - Corromper, adulterar, falsificar ou alterar substância ou produto alimentício destinado a consumo, tornando-o nociva à saúde ou reduzindo-lhe o valor nutritivo:
Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.
§ 1º - Está sujeito às mesmas penas quem pratica as ações previstas neste artigo em relação a bebidas, com ou sem teor alcoólico.
3- no entanto, tal prova não parece possível porque em nenhum momento da gravação se vê a ambulante vendendo ou mesmo oferecendo a consumo a referida substância. Ao contrário, procurada pela reportagem, ante a enorme propagação do fato, apresenta testemunhas que afirmam que a água suja contida nas garrafinhas destinava-se a um bloco carnavalesco que se diverte jogando água uns nos outros.
4-aos prantos, humilhada, a pobre ambulante, visivelmente abalada ante a repercussão do fato , diz que vai procurar seus direitos.
5- neste caso, na esfera penal, em tese, após apuração dos fatos, a pessoa que gravou , em não obtendo êxito de provar que a água falsificada era destinada a consumo, deve responder pelo crime de calúnia , na forma majorada, conforme arts 138 c/c art 141, III. Vejamos:
Calúnia
Art. 138 - Caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos, e multa.
Art. 141 - As penas cominadas neste Capítulo aumentam-se de um terço, se qualquer dos crimes é cometido:
III - na presença de várias pessoas, ou por meio que facilite a divulgação da calúnia, da difamação ou da injúria.
6- o que se viu aqui foi um ato despropositado, maldoso, falsamente maquiado de “boas intenções”, precipitado e leviano, atingindo em cheio a honra, a imagem e a dignidade da pessoa humana, este último guindado a fundamento maior de nosso arcabouço jurídico.
7- mas não é só. Conhecendo nossa cultura ainda bastante preconceituosa, certamente a discriminação restou embutida na ação contumaz, uma vez que uma pessoa pobre, de cor negra, só pode mesmo ser suja e desonesta, ignorando qualquer padrão de higiene ou conduta ética e adequada à boa convivência social . Tal fato, se sobejamente provado, culminaria em mais um crime, agora do art 140, §3º do Código Penal.
Injúria
Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.
§ 3o Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência:
Pena - reclusão de um a três anos e multa.
8- explanei rapidamente , e sempre , EM TESE, o fato e suas possíveis consequências na esfera penal. Lógico que tudo dependerá de criteriosa investigação (se é que haverá uma...afinal...de quem estamos falando? ) . Mas, para além da intenção de trazer o fato concreto da vida à moldura do tipo penal, o intuito maior é mostrar meu repúdio e deixar o alerta de que este enorme poder que nos é dado de manipular uma câmera e divulgar imagens de pessoas , muitas vezes inocentes, vítimas de gestos covardes, pode trazer consequências tanto na esfera cível quanto penal.
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