domingo, 11 de março de 2018



Estudo de caso

São Paulo-SP, agosto de 2017, uma mulher encontrava-se dormindo no interior de um ônibus coletivo quando, subitamente, um desconhecido ejacula em seu pescoço.
1-      Inicialmente, o homem foi conduzido à delegacia para providências iniciais.
2-      Apresentado ao juiz, este entendeu por  liberá-lo , eis que, segundo o magistrado, não havia motivo para prisão cautelar, haja vista que o fato amolda-se ao tipo legal do art 61 da lei de contravenções penais – importunação ofensiva ao pudor, com pena ínfima de pagamento de multa de meros contos de réis (legislação ultrapassada nesta parte)
3-      A sociedade  , inconformada, lança severas críticas à decisão do juiz, entendendo que o magistrado fora condescendente com o infrator, pois o ato coaduna-se com o delito de estupro (crime alçado pela lei 8072/90 à condição de hediondo), cuja pena varia entre 6 e 10 anos de reclusão, no regime inicial fechado.
4-    Pressionado pelo clamor público, o Ministério Público requer a prisão preventiva do infrator e o magistrado (penso que não foi o mesmo da decisão anterior)  a concede.
Em apertada síntese, estes os fatos.
Breve análise jurídica:

1- Diferença entre crime hediondo e  infração de menor potencial ofensivo (contravenção penal)
A lei 8072/90 assenta que o estupro é crime hediondo, sendo tal crime insuscetível de anistia, graça, indulto, fiança e após condenação, a pena deve ser cumprida em regime inicial fechado, cuja progressão não se dá após o cumprimento de 1/6 da pena, mas sim com 2/5 ou 3/5, a depender da primariedade do réu.
Já a contravenção penal do art 61 do dec lei 4688/41 é infração de menor potencial ofensivo, logo, não se sujeita à prisão em flagrante e nem mesmo se estipula fiança (o infrator se livra solto) . O delegado lavra um termo circunstanciado de ocorrência e o infrator é encaminhado ao Juizado Especial Criminal para as medidas previstas na lei 9099/95.

2-  A contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor

Importunação ofensiva ao pudor- art 61 dec lei 3688/41

Art. 61. Importunar alguém, em lugar público ou acessivel ao público, de modo ofensivo ao pudor:
        Pena – multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis.

Importunar é perturbar o sossego, incomodar, constranger no sentido de envergonhar, “desconsertar” uma pessoa frente a outras.

3- Estupro ( art 213 CP)
Art. 213.  Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:          
 Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.    
4-Estupro de vulnerável ( 217-A)
Art. 217-A.  Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:               
 Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.             
§ 1o  Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.   

Obs: vale repetir que, de acordo com a lei 8072/90, estes são crimes hediondos, sujeitando-se, antes da condenação à impossibilidade de fiança e anistia , embora admita liberdade provisória, podendo o magistrado aplicar medidas cautelares diversas previstas no art 319 do CPP.  Após a condenação transitada em julgado, sujeita-se o réu  à pena privativa de liberdade em regime inicial fechado, sem direito a indulto ou graça, embora possa progredir de regime após cumprimento de 2/5 da pena se for primário e 3/5 se reincidente e também pode obter livramento condicional após cumpridos mais de 2/3 da pena, se não for reincidente específico.( art 83 CP).

5-ATO LIBIDINOSO

- ato de cunho erótico para satisfação da lascívia, da libido.
- ação que atinge o pudor, praticada com fins lascivos, luxuriosos.
- o beijo lascivo, segundo Damásio, constitui ato libidinoso.
- o ato de masturbação é um ato libidinoso.
- no estupro, o uso de violência (COAÇÃO FÍSICA)  ou grave ameaça (COAÇÃO MORAL)  se dirige a fazer com que a vítima pratique ou permita que com ela se pratique ato libidinoso

6- O ATO DE CONSTRANGER  ALGUÉM 

- CONSTRANGER aqui tem o sentido de  FORÇAR, OBRIGAR alguém a fazer ou não fazer algo que ela não queira.  Em termos legais,  não tem o sentido de embaraçar, humilhar, salvo , penso eu, no caso do crime de  assédio sexual.

7- OBSERVAÇÕES IMPORTANTES QUE TRAGO AO CASO: 

- a lei de tortura ( 9455/97), em seu art 1º, I também traz a expressão “ constranger”

Art. 1º Constitui crime de tortura:
I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:
a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;
b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;
c) em razão de discriminação racial ou religiosa;

- o Código Penal brasileiro traz a expressão “constranger” em diversos tipos penais, dentre eles:

Constrangimento ilegal
        Art. 146 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda:
        Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.

Extorsão
        Art. 158 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma coisa:
        Pena - reclusão, de quatro a dez anos, e multa.

Também os artigos 197,198,199 do CP- crimes contra a organização do trabalho- “ constranger, mediante violência ou grave ameaça”
ex: obrigar alguém a se associar a sindicato, a fazer ou participar de greve, a fechar comércio...


Assédio sexual           (AQUI NÃO EXIGIU VIOLÊNCIA OU GRAVE AMEAÇA)
        Art. 216-A. Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função.               
        Pena – detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos.     

*Observem que dentre todos estes crimes, o único que não trouxe a expressão “constranger” interligada  às expressões “ violência ou grave ameaça” foi o crime de assédio sexual. Logo, deduz-se que a “violência” ou “grave ameaça” são meios para se atingir o fim que é o constrangimento (forçar, obrigar). Não se pode forçar ou obrigar alguém a fazer algo, a não ser por meio de coação física (violência) ou moral (grave ameaça de um mal futuro).

Assim, a expressão “constranger” contida no crime de estupro, vem seguida de violência, que é coação FÍSICA ou grave ameaça , que é coação MORAL. No caso em tela, não houve tais espécies de coação, eis que a vítima encontrava-se dormindo.
Nem se diga então, que trata-se de estupro de vulnerável, pois não foi o infrator que provocou a sonolência da vítima para então, com ela, praticar ato libidinoso. Ela naturalmente encontrava-se dormindo e ele, valendo-se dessa situação, praticou o ato libidinoso.

8-DOENÇA MENTAL /PRISÃO PREVENTIVA

Cabe preventiva para contravenção penal?  Não.  Art 313 CPP

Art. 313.  Nos termos do art. 312 deste Código, será admitida a decretação da prisão preventiva:        (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
I - nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos;  

- doente mental pode ser preso preventivamente? NÃO.

CPP, Art. 319.  São medidas cautelares diversas da prisão:  

VII - internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (art. 26 do Código Penal) e houver risco de reiteração;     

9-APÓS AS PRESSÕES SOCIAIS, HOUVE A PRISÃO PREVENTIVA do INFRATOR. INDAGA-SE:  HAVIA FUNDAMENTO LEGAL? 

Para haver prisão preventiva é preciso verificar se existem os pressupostos e fundamentos previstos no art 312  do CPP, além das hipóteses de admissibilidade do art  313.
a) Se inicialmente, o juiz entendeu que não houve crime, mas sim contravenção, não é cabível a preventiva.
b) pairam dúvidas sobre a sanidade mental do infrator, logo, deveria o magistrado ter aplicado a medida cautelar do 319, VII. Isso já evitaria que houvesse reiteração de infrações por parte do infrator.
c) para aplicação da prisão preventiva far-se-ia necessário reconhecer que o infrator num primeiro momento, tivesse praticado crime: a) grave b) com pena máxima superior a 4 anos c) que houvesse prova da existência de tal crime d) para garantia da ordem pública .
Ora, para que haja perfeito enquadramento nessas hipóteses, é preciso que o magistrado tenha mudado  seu posicionamento, entendendo agora, que houve de fato, delito de estupro e não mera contravenção, e mais, que o infrator não apresentasse nenhum sinal de debilidade mental.  (assim, penso que o juiz que determinou a preventiva não foi  o mesmo que entendeu pela classificação da infração em contravenção penal)

10- CONCLUSÕES

Tecnicamente falando, por todas as razões aqui expostas, penso que o magistrado estava com a razão. De fato, de acordo com a lei, não houve estupro. NÃO HOUVE O CONSTRANGIMENTO no sentido de “forçar”, “obrigar”, mediante aplicação de violência (coação física) ou grave ameaça (coação moral). Não houve violência, repita-se, porque a violência (força física)  é o meio para se atingir o fim (constranger) .  Daí porque o legislador distinguiu as expressões “constranger” e “importunar”.
Nem se diga que o episódio em si, carrega certa dose de violência implícita. Isso  pode até ser verdade, num contexto sociológico, no entanto, não é permitido ao juiz, interpretando o contexto sociológico, criar um tipo penal.  Se o dispositivo penal criado pelo legislador não traz , de forma categórica,  a expressão “ mediante violência”, o juiz estará impedido de fazê-lo, sob pena de ferir o principio da legalidade, expresso inclusive em nossa Constituição Federal, criando assim, enorme insegurança jurídica. A lei penal deve ser certa, taxativa, inadmite analogias em prejuízo do acusado. Só há infração penal (seja crime, seja contravenção), se uma LEI anterior  a definir. O que não estiver expresso na lei, não pode ser criado pelo juiz e muito menos pela sociedade.
Me  parece que o único crime onde a expressão “constranger” não tem o sentido de forçar, obrigar é o de assédio sexual. É que se o chefe de uma mulher a obriga a com ele praticar atos libidinosos sob  pena de demiti-la, penso que aí teríamos o crime de estupro, pois ele a constrangeu (obrigou) a com ele praticar ato libidinoso mediante grave ameaça (demissão). Mas veja que o crime de assédio sexual não cita a expressão “violência” ou “grave ameaça”, então o constrangimento a que se refere o artigo só pode ser no sentido de “ importunar”, “desconsertar”, submeter a vítima a situação vexatória, etc. daí porque a pena é até pequena, pois a máxima não passa de 2 anos.
As críticas ao magistrado são até compreensíveis, dadas as circunstâncias  de um fato lamentável, asqueroso, repugnante, vexatório e até humilhante, mas penso que a falha maior é do legislador e não do juiz, que aplica a lei. Falha ainda maior do Estado que já não tomara providências  quanto a retirar esse indivíduo do convívio social, pois tem-se notícias de que ele já houvera praticado outras infrações de conotação libidinosa por diversas vezes.
O legislador deve estar atento aos fatos sociais. Se é recorrente a prática de atos libidinosos contra mulheres em transportes coletivos (ex; metrô de São Paulo), é hora de alçar a contravenção de importunação ao pudor à condição de crime, punindo tais atos  , por exemplo , com pena de reclusão de até 3 anos e mais multa (atualizada). Seria uma boa saída, ao menos para os efeitos penais.

Prof Lincoln Rufino