Estudo de caso
São Paulo-SP, agosto de 2017, uma
mulher encontrava-se dormindo no interior de um ônibus coletivo quando,
subitamente, um desconhecido ejacula em seu pescoço.
1- Inicialmente,
o homem foi conduzido à delegacia para providências iniciais.
2- Apresentado
ao juiz, este entendeu por liberá-lo ,
eis que, segundo o magistrado, não havia motivo para prisão cautelar, haja
vista que o fato amolda-se ao tipo legal do art 61 da lei de contravenções
penais – importunação ofensiva ao pudor, com pena ínfima de pagamento de multa
de meros contos de réis (legislação ultrapassada nesta parte)
3- A
sociedade , inconformada, lança severas
críticas à decisão do juiz, entendendo que o magistrado fora condescendente com
o infrator, pois o ato coaduna-se com o delito de estupro (crime alçado pela
lei 8072/90 à condição de hediondo), cuja pena varia entre 6 e 10 anos de
reclusão, no regime inicial fechado.
4- Pressionado
pelo clamor público, o Ministério Público requer a prisão preventiva do
infrator e o magistrado (penso que não foi o mesmo da decisão anterior) a concede.
Em apertada síntese, estes os fatos.
Breve análise jurídica:
1- Diferença entre crime hediondo e infração de menor potencial ofensivo
(contravenção penal)
A lei 8072/90 assenta que o
estupro é crime hediondo, sendo tal crime insuscetível de anistia, graça,
indulto, fiança e após condenação, a pena deve ser cumprida em regime inicial
fechado, cuja progressão não se dá após o cumprimento de 1/6 da pena, mas sim
com 2/5 ou 3/5, a depender da primariedade do réu.
Já a contravenção penal do art 61
do dec lei 4688/41 é infração de menor potencial ofensivo, logo, não se sujeita
à prisão em flagrante e nem mesmo se estipula fiança (o infrator se livra
solto) . O delegado lavra um termo circunstanciado de ocorrência e o infrator é
encaminhado ao Juizado Especial Criminal para as medidas previstas na lei
9099/95.
2- A contravenção penal de importunação
ofensiva ao pudor
Importunação ofensiva
ao pudor- art 61 dec lei 3688/41
Art. 61. Importunar alguém, em lugar público ou acessivel ao público, de modo ofensivo ao pudor:
Pena – multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis.
Importunar é
perturbar o sossego, incomodar, constranger
no sentido de envergonhar, “desconsertar” uma pessoa frente a outras.
3- Estupro ( art 213 CP)
Art. 213. Constranger
alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a
praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato
libidinoso:
Pena - reclusão, de 6
(seis) a 10 (dez) anos.
4-Estupro de
vulnerável ( 217-A)
Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze)
anos:
Pena - reclusão, de 8
(oito) a 15 (quinze)
anos.
§ 1o Incorre na mesma pena quem pratica as
ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência
mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não
pode oferecer resistência.
Obs: vale repetir que, de acordo
com a lei 8072/90, estes são crimes hediondos, sujeitando-se, antes da condenação à impossibilidade
de fiança e anistia , embora admita liberdade provisória, podendo o magistrado
aplicar medidas cautelares diversas previstas no art 319 do CPP. Após a
condenação transitada em julgado, sujeita-se o réu à pena privativa de liberdade em regime
inicial fechado, sem direito a indulto ou graça, embora possa progredir de
regime após cumprimento de 2/5 da pena se for primário e 3/5 se reincidente e
também pode obter livramento condicional após cumpridos mais de 2/3 da pena, se
não for reincidente específico.( art 83 CP).
5-ATO LIBIDINOSO
- ato de cunho erótico para
satisfação da lascívia, da libido.
- ação que atinge o pudor,
praticada com fins lascivos, luxuriosos.
- o beijo lascivo, segundo
Damásio, constitui ato libidinoso.
- o ato de masturbação é um ato
libidinoso.
- no estupro, o uso de violência (COAÇÃO FÍSICA) ou grave ameaça (COAÇÃO MORAL) se dirige a fazer com que a vítima pratique
ou permita que com ela se pratique ato libidinoso
6- O ATO DE CONSTRANGER
ALGUÉM
- CONSTRANGER aqui tem o sentido
de FORÇAR, OBRIGAR alguém a fazer ou não
fazer algo que ela não queira. Em termos
legais, não tem o sentido de embaraçar,
humilhar, salvo , penso eu, no caso do crime de assédio sexual.
7- OBSERVAÇÕES
IMPORTANTES QUE TRAGO AO CASO:
- a lei de tortura ( 9455/97), em seu art 1º, I também traz
a expressão “ constranger”
Art. 1º
Constitui crime de tortura:
I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça,
causando-lhe sofrimento físico ou mental:
a) com o
fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira
pessoa;
b) para
provocar ação ou omissão de natureza criminosa;
c) em
razão de discriminação racial ou religiosa;
- o Código Penal brasileiro traz a expressão “constranger”
em diversos tipos penais, dentre eles:
Constrangimento
ilegal
Art. 146 - Constranger alguém,
mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por
qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei
permite, ou a fazer o que ela não manda:
Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.
Extorsão
Art. 158 - Constranger alguém,
mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter para si ou
para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar
de fazer alguma coisa:
Pena - reclusão, de quatro a dez anos, e multa.
Também os artigos 197,198,199 do CP- crimes contra a organização do
trabalho- “
constranger, mediante violência ou grave ameaça”
ex: obrigar alguém a se associar a sindicato, a fazer ou participar de greve,
a fechar comércio...
Assédio sexual (AQUI NÃO EXIGIU VIOLÊNCIA OU GRAVE AMEAÇA)
Art. 216-A. Constranger alguém com o intuito
de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua
condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de
emprego, cargo ou
função.
Pena – detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos.
*Observem
que dentre todos estes crimes, o único que não trouxe a expressão “constranger” interligada às expressões “ violência ou grave ameaça”
foi o crime de assédio sexual. Logo, deduz-se que a “violência” ou “grave
ameaça” são meios para se atingir o fim que é o constrangimento (forçar,
obrigar). Não se pode forçar ou obrigar alguém a fazer algo, a não ser por meio
de coação física (violência) ou moral (grave ameaça de um mal futuro).
Assim, a expressão “constranger”
contida no crime de estupro, vem seguida de violência, que é coação FÍSICA ou
grave ameaça , que é coação MORAL. No caso em tela, não houve tais espécies de
coação, eis que a vítima encontrava-se dormindo.
Nem se diga então, que trata-se
de estupro de vulnerável, pois não foi o infrator que provocou a sonolência da
vítima para então, com ela, praticar ato libidinoso. Ela naturalmente
encontrava-se dormindo e ele, valendo-se dessa situação, praticou o ato
libidinoso.
8-DOENÇA MENTAL /PRISÃO
PREVENTIVA
Cabe preventiva para contravenção penal? Não.
Art 313 CPP
Art. 313. Nos
termos do art. 312 deste Código, será admitida a decretação da prisão
preventiva: (Redação dada pela Lei nº 12.403, de
2011).
I - nos crimes dolosos punidos com pena
privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos;
- doente mental pode ser preso preventivamente? NÃO.
CPP, Art. 319. São medidas cautelares diversas da
prisão:
VII - internação
provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com
violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou
semi-imputável (art. 26 do Código Penal) e
houver risco de reiteração;
9-APÓS AS PRESSÕES SOCIAIS, HOUVE A PRISÃO PREVENTIVA do INFRATOR.
INDAGA-SE: HAVIA FUNDAMENTO LEGAL?
Para haver prisão preventiva é
preciso verificar se existem os pressupostos e fundamentos previstos no art 312
do CPP, além das hipóteses de
admissibilidade do art 313.
a) Se inicialmente, o juiz
entendeu que não houve crime, mas sim contravenção, não é cabível a preventiva.
b) pairam dúvidas sobre a
sanidade mental do infrator, logo, deveria o magistrado ter aplicado a medida
cautelar do 319, VII. Isso já evitaria que houvesse reiteração de infrações por
parte do infrator.
c) para aplicação da prisão
preventiva far-se-ia necessário reconhecer que o infrator num primeiro momento,
tivesse praticado crime: a) grave b) com pena máxima superior a 4 anos c) que
houvesse prova da existência de tal crime d) para garantia da ordem pública .
Ora, para que haja perfeito enquadramento
nessas hipóteses, é preciso que o magistrado tenha mudado seu posicionamento, entendendo agora, que
houve de fato, delito de estupro e não mera contravenção, e mais, que o
infrator não apresentasse nenhum sinal de debilidade mental. (assim, penso que o juiz que determinou a
preventiva não foi o mesmo que entendeu
pela classificação da infração em contravenção penal)
10- CONCLUSÕES
Tecnicamente falando, por todas
as razões aqui expostas, penso que o magistrado estava com a razão. De fato, de
acordo com a lei, não houve estupro. NÃO HOUVE O CONSTRANGIMENTO no sentido de
“forçar”, “obrigar”, mediante aplicação de violência (coação física) ou grave
ameaça (coação moral). Não houve violência, repita-se, porque a violência
(força física) é o meio para se atingir
o fim (constranger) . Daí porque o
legislador distinguiu as expressões “constranger” e “importunar”.
Nem se diga que o episódio em si,
carrega certa dose de violência implícita. Isso pode até ser verdade, num contexto
sociológico, no entanto, não é permitido ao juiz, interpretando o contexto
sociológico, criar um tipo penal. Se o
dispositivo penal criado pelo legislador não traz , de forma categórica, a expressão “ mediante violência”, o juiz estará impedido de fazê-lo, sob pena de
ferir o principio da legalidade, expresso inclusive em nossa Constituição
Federal, criando assim, enorme insegurança jurídica. A lei penal deve ser
certa, taxativa, inadmite analogias em prejuízo do acusado. Só há infração
penal (seja crime, seja contravenção), se uma LEI anterior a definir. O que não estiver expresso na lei,
não pode ser criado pelo juiz e muito menos pela sociedade.
Me parece que o único crime onde a expressão
“constranger” não tem o sentido de forçar, obrigar é o de assédio sexual. É que
se o chefe de uma mulher a obriga a com ele praticar atos libidinosos sob pena de demiti-la, penso que aí teríamos o crime
de estupro, pois ele a constrangeu (obrigou) a com ele praticar ato libidinoso
mediante grave ameaça (demissão). Mas veja que o crime de assédio sexual não
cita a expressão “violência” ou “grave ameaça”, então o constrangimento a que
se refere o artigo só pode ser no sentido de “ importunar”, “desconsertar”,
submeter a vítima a situação vexatória, etc. daí porque a pena é até pequena,
pois a máxima não passa de 2 anos.
As críticas ao magistrado são até
compreensíveis, dadas as circunstâncias
de um fato lamentável, asqueroso, repugnante, vexatório e até humilhante,
mas penso que a falha maior é do legislador e não do juiz, que aplica a lei.
Falha ainda maior do Estado que já não tomara providências quanto a retirar esse indivíduo do convívio
social, pois tem-se notícias de que ele já houvera praticado outras infrações
de conotação libidinosa por diversas vezes.
O legislador deve estar atento
aos fatos sociais. Se é recorrente a prática de atos libidinosos contra mulheres
em transportes coletivos (ex; metrô de São Paulo), é hora de alçar a
contravenção de importunação ao pudor
à condição de crime, punindo tais atos ,
por exemplo , com pena de reclusão de até 3 anos e mais multa (atualizada).
Seria uma boa saída, ao menos para os efeitos penais.
Prof Lincoln Rufino